Acordo ao som de Bach. A bailarina dança no corredor olhando,
ora para mim, ora para a sala. Percebo que ela quer me dizer alguma coisa. Mas
ela apenas dança, com seus pezinhos de bailarina e o sorriso inocente de quem nunca
fez outra coisa na vida senão dançar. A sapatilha desamarra e a bailarina
interrompe um rodopio e se abaixa para amarrar o laçinho de cetim cor-de-rosa.
Quando ela se abaixa consigo ver de relance o que ela, dançando, queria me
dizer. É aquela mulher que veio me
visitar e está agora sentada no sofá, de pernas cruzadas, fumando um cigarro, esperando
pacientemente por mim. Espera que eu me levante, me sente ao seu lado, mas não
vou fazer isso, não agora. Ainda preciso de tempo, preciso pensar, não consigo
pensar. Só consigo olhar para a dança da bailarina, é a última dança, a última
que verei. A flauta do menino faz a bailarina dançar e eu não escutarei mais o
som da flauta, nem as risadinhas que a bailarina solta toda vez que erra um
passo.
Então é essa a sensação. Torpor, ampliação dos sentidos. A
música me entorpece e não sei se acho isso bom ou ruim. Consigo escutar a dança
da bailarina, encostar nas notas que saem da flauta do menino, suar de frio. O
colchão me acorrenta e o chão me parece muito hostil. Ela me espera, ainda
sentada no sofá. A bailarina dança e ela me espera. A morte me espera. Sinto
sua mão fria estendida em minha direção e a imobilidade é minha única defesa.
Tenho a impressão de que se eu respirar, morrerei. Mas se eu não respirar o fim
não será diferente.
A bailarina dança. A bailarina quer. Quer tanta coisa e nem
sabe que tem o mundo aos seus pés. Não sabe o quanto é amada. Ela precisa
dançar. Seus olhos dançam, seu sorriso dança, sua respiração dança e quando
dorme, até seus sonhos dançam. Não quero que ela pare de dançar, não quero que
cresça, quero que seja sempre a bailarina.
O menino da flauta eu quero que cresça. Ele carrega a guerra
e a paz. Quero aliviá-lo do peso da guerra. Quero poder descansar meus olhos em
seus olhinhos azuis da paz. Quero que cresça para que entenda que nas batalhas
da vida só o amor sai vencedor.
A bailarina dança, o menino cresce e a morte me espera. É a
hora então. Arranco do coração os sentimentos mais belos e divido-os entre a
bailarina e o menino: a capacidade de amar, de perdoar, de admitir os próprios
erros, superar obstáculos, suportar a dor, ser amigo, se deixar ser amado.
Quero que fique com eles tudo de bom que aprendi nessa vida, os melhores
sentimentos, mesmo aqueles que eu não tive maturidade ou não fui boa o
suficiente para sentir. No vazio que
fica no meu coração coloco o sorriso da bailarina, os olhinhos vivos e brilhantes
do menino, quebro as correntes que me prendem ao colchão, enfrento a
hostilidade do chão, me sento no sofá e encosto minha cabeça no ombro daquela
que, pacientemente, me esperou por tantos anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário