sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A bailarina e o menino - A última ressaca (por LUA)





      Acordo ao som de Bach. A bailarina dança no corredor olhando, ora para mim, ora para a sala. Percebo que ela quer me dizer alguma coisa. Mas ela apenas dança, com seus pezinhos de bailarina e o sorriso inocente de quem nunca fez outra coisa na vida senão dançar. A sapatilha desamarra e a bailarina interrompe um rodopio e se abaixa para amarrar o laçinho de cetim cor-de-rosa. Quando ela se abaixa consigo ver de relance o que ela, dançando, queria me dizer.  É aquela mulher que veio me visitar e está agora sentada no sofá, de pernas cruzadas, fumando um cigarro, esperando pacientemente por mim. Espera que eu me levante, me sente ao seu lado, mas não vou fazer isso, não agora. Ainda preciso de tempo, preciso pensar, não consigo pensar. Só consigo olhar para a dança da bailarina, é a última dança, a última que verei. A flauta do menino faz a bailarina dançar e eu não escutarei mais o som da flauta, nem as risadinhas que a bailarina solta toda vez que erra um passo.

      Então é essa a sensação. Torpor, ampliação dos sentidos. A música me entorpece e não sei se acho isso bom ou ruim. Consigo escutar a dança da bailarina, encostar nas notas que saem da flauta do menino, suar de frio. O colchão me acorrenta e o chão me parece muito hostil. Ela me espera, ainda sentada no sofá. A bailarina dança e ela me espera. A morte me espera. Sinto sua mão fria estendida em minha direção e a imobilidade é minha única defesa. Tenho a impressão de que se eu respirar, morrerei. Mas se eu não respirar o fim não será diferente.

      A bailarina dança. A bailarina quer. Quer tanta coisa e nem sabe que tem o mundo aos seus pés. Não sabe o quanto é amada. Ela precisa dançar. Seus olhos dançam, seu sorriso dança, sua respiração dança e quando dorme, até seus sonhos dançam. Não quero que ela pare de dançar, não quero que cresça, quero que seja sempre a bailarina.

      O menino da flauta eu quero que cresça. Ele carrega a guerra e a paz. Quero aliviá-lo do peso da guerra. Quero poder descansar meus olhos em seus olhinhos azuis da paz. Quero que cresça para que entenda que nas batalhas da vida só o amor sai vencedor.

      A bailarina dança, o menino cresce e a morte me espera. É a hora então. Arranco do coração os sentimentos mais belos e divido-os entre a bailarina e o menino: a capacidade de amar, de perdoar, de admitir os próprios erros, superar obstáculos, suportar a dor, ser amigo, se deixar ser amado. Quero que fique com eles tudo de bom que aprendi nessa vida, os melhores sentimentos, mesmo aqueles que eu não tive maturidade ou não fui boa o suficiente para sentir.  No vazio que fica no meu coração coloco o sorriso da bailarina, os olhinhos vivos e brilhantes do menino, quebro as correntes que me prendem ao colchão, enfrento a hostilidade do chão, me sento no sofá e encosto minha cabeça no ombro daquela que, pacientemente, me esperou por tantos anos.

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