Canoa
Quebrada, ainda que linda, se diferencia muito de Jericoacoara, pois já é
bastante asfaltada e seus bares e restaurantes se aglutinam na broadway, rua onde não transitam
veículos. No entanto, a característica mais marcante da vila é a presença, em
suas praias, de falésias de areia avermelhada onde inúmeros artistas aproveitam
dessa estrutura para esculpirem diversas obras de arte, sendo que a mais
recorrente é a lua e a estrela, símbolo da vila.
Em
Canoa, pensando em ficar poucos dias, me hospedei inicialmente numa pousada um
pouco mais requintada, com piscina e tudo mais. Saio para conhecer a noite da
vila e me encosto num balcão do Bar Todo Mundo, onde só rolava rock’n’roll
gringo, ou gringo e rock’n’roll, não importando a ordem. Tudo normal. Fico sabendo
de um som ao vivo num bar chamado Wallayê e então saio a procurar.
Nessa
altura do meu passeio e com a experiência de Jeri, eu já saia da pousada com o
pandeiro a tiracolo para evitar esforço em caso de alguma surpresa
etílico-musical. Procuro pela vila e, então, acho o tal Wallayê numa via
lateral à Broadway. Lá estava tocando
um tal de Juracy Montenegro, o Jura de Canoa, figurassa que, de calção e
chinelo, mandava muito bem na voz e no violão, com um jeito próprio de
interpretar as músicas, com risadas, dançadinhas e comentários introduzidos
entre as frases que deixava todo mundo ligado em sua apresentação.
Fico
no balcão e peço um mojito, drinque parecido com a nossa caipirinha, porém com
a presença de hortelã. Percebo uma galera bastante animada entre as mesas, eram
dois italianos que falavam bem o português e umas garotas que notei serem
brasileiras. Todos estavam muito animados e eu gostei muito do lugar. O
proprietário também era um italiano, o Stefano. Assim, segue a noite com o Jura
levando muitos sons do Tim Maia, Jorge Benjor, Gilberto Gil e de outros da
melhor safra da música brasileira. Peço a conta, quando percebo que o Jura, no
intervalo de sua apresentação, aproxima-se do balcão e nota a presença do
pandeiro em meu franco e já vai se apresentando. Trocamos umas idéias e ele me
diz que no outro dia iria rolar uma feijoada para convidados e que também iria
rolar uns batuques e tal e que, se eu quisesse, era só aparecer. Respondi: “na
hora meu caro”.
O
engraçado era que, durante essa viagem, nas noites eu carregava o pandeiro em
seu estojo e de dia, esse mesmo estojo servia pra carregar protetor solar – e
haja protetor – walkman, óculos escuros, livro e otchas coisitchas mais que iam
comigo para as praias e para as caminhadas. No domingo pela manhã, então,
resolvo fazer uma caminhada mais longa pelas praias de Canoa. Minha intenção
era ir até Marjolândia, uma vila que fica a uns cinco ou sete quilômetros de
Canoa. Saio por volta das 9 horas e sigo a caminhada com o mar de um lado e
falésias de outros, alguns bugues com turistas em passeios, areias e
condomínios de um lado, corais e o mar de outro. Mar de um lado e dou outro
umas esculturas sinistras nas Falésias. Só vendo.
O
Suor já descia bastante quando avisto a praia de Marjolândia, que, por sinal,
estava muito cheia. Era domingo e a galera estava de folga. Notei que a praia
era freqüentada apenas pelos nativos. Muita farofa, mas achei o lugar
interessante. Havia até uns “Salva-vidas” cada um mais malhado do que o outro,
para não dizer o contrário. Vide foto.
Tomo
umas cervejas com preço, é claro, bem mais em conta do que Canoa e resolvo
voltar para não perder a tal feijoada do Jura. Venho caminhado próximo às
quebras das ondas, molhando os pés quando, de repente, na batida da onda na areia
eu escuto o som de uma linha de contrabaixo. Eu não estava ouvindo nada no
momento. Meu walkman estava desligado. Fico com aquele som na cabeça e, com
medo de acabar esquecendo aquela harmonia, solfejo aquilo que ouvi aproveitando
do walkman para gravar o lance. Chego na pousada eufórico e esculto a gravação
para ver se saiu direitinho. Havia gravado na fita cassete, encima dumas
músicas que curtia muito, mas não importava, estava sentido que dali poderia
sair algo legal.
Chego
no Wallayê. Feijoada rolando e eu morrendo de fome. Tudo certo. Peço meu prato
e me sento a uma mesa sozinho. Quando o Jura me avista e, dizendo “ôh do
pandeiro”, pede para vir sentar com ele e sua galera. Noto que o pessoal era
aquele mesmo da noite anterior, ou seja, os italianos e as meninas brasileiras
que havia comentado. Então, o pessoal me adianta que não iria mais rolar o
samba, pois uma galera não pode ir e também pintou um compromisso de última
hora para o Jura e ele teria que se ausentar. Não gostei da notícia, mas o papo
na mesa tava muito bom. Os italianos falavam português direitinho e, além do
mais, eram muito engraçados e a Carlinha, a Paola, a Marjorie e a Kinkinha
enchiam o ambiente de beleza, boa prosa e simpatia.Os italianos eram o Carlo e
o Gianne, sendo que esse último era figura demais. O cara tinha uma verdadeira
adoração pela música brasileira e conhecia coisas que eu nem sabia que existia.
Mais
tarde, também se juntou à mesa o Stefano e aí começamos a jogar com dados um
tal de Mentiroso e, apesar de animado, confesso que nunca entendi as regras do
jogo. Teve partida que eu até venci sem saber o que estava rolando. Entramos
noite a dentro jogando e, depois de muitas cervejas e algumas Ypiocas,
saímos em grupo para curtir um luau que
estava rolando na barraca Freedon na praia.
Estava
pensando: “caramba, ta muito legal aqui em Canoa” e o foda era que ficaria
somente mais um dia no local. Porém, o pessoal me alertou sobre a Pousada
Morada D’aldeia, onde os italianos estavam hospedados, dizendo que o local era muito
bom e ainda havíamos combinado um passeio pela manhã seguinte com um bugueiro
chamado Sapinho. Na segunda era a folga dos bugueiros.
Acordo
cedo, tomo café, junto minhas tralhas e sigo de mochila e tudo para a Morada
D’aldeia. A Dona Neita me atende. Mãe da Paola e muito simpática, mostra-me um
quarto onde me acomodar. Agrado-me do local. O Gianne e o Carlo estavam
terminando de tomar o café da manhã e logo chegam o Sapinho e o Jura já com o
bugue pronto para o passeio. Fico sabendo que o Sapinho também é percussionista
e no bugue havia violão, tam-tam e outros instrumentos percussivos. Levo o
pandeiro e a gente segue passando por praias e dunas até chegar em um quiosque
à beira de um pequeno lago de água cristalina. Paramos por lá e já fomos
pedindo o prato, pois é costume no local, além da ótima qualidade do rango, a
demora em servi-lo. Tivemos
a honra de ouvir alguns poemas declamados pelo Seu Arnolfo, dono do
estabelecimento e morador de Aracati, cidade adjacente à Canoa. Abrimos os
trabalhos com cervejas e caipirinhas, além de otchas coisitchas mais. Estava todo
mundo disperso curtindo o lugar e a gente ainda não tava no clima para fazer um
barulho. Mais caipis e cervas e Gianne pega o violão e começa a tocar. O cara
mandava bem na viola e somente tocava música brasileira. Mandou Natiruts e
tudo... Aí, cada um pegou de um instrumento, ou não, pegou de seu copo ou
cigarro e fomos mandando uns sons muito maneiros. O Jura levou até Lionel
Richie – all night long – e assim seguimos, quando, de repente, começam a
chegar alguns turistas com bugueiros que, apesar da folga de alguns,
aproveitavam a segunda para ganhar um trocado a mais. Porém, os turistas
ficavam pouco tempo por lá e seguiam seus passeios. Muitos curtiam uma música
ou outra que a gente levava. No entanto, uma garota, por sinal, muito bem
afeiçoada e em trajes de banho, ficou maravilhada com o som que estávamos
levando, sambou um bocado e implorou para o bugueiro para ficar no local.
Porém, os demais turistas que estavam com ela queriam seguir o passeio e,
assim, infelizmente, ela deixou o local chateada. Aquela cena ficou na memória.
Fiz
muitas amizades em Canoa e os 4 dias previstos acabaram sendo 11. Quase perco o
natal em Fortaleza.
Voltei para Brasília com sede de música. Pensava, olhando para
o horizonte (feito imagem de filme...rs), em participar de algum grupo de
percussão e em valorizar mais nossa música, seguindo o conselho de meu amigo
italiano, o Gianne. Comecei a ouvir Lenine.
Já
havia testado a harmonia composta com base no som das ondas que captei em
Canoa, o tom era sol menor e um dia correndo pelo calçadão da L norte, em
Taguatinga, expiro mentalmente a seguinte frase:
“É
bonito o mar,
É
bonito o mar,
A
onda quebra na praia.”
Restava
saber se a melodia com a qual eu entoava essas frases se encaixaria na harmonia
que já havia composto. Chego ansioso em casa, pego o violão e tudo se encaixa
como uma luva. Pirei!
Daí
por diante estendi mais a harmonia, segurando em sol menor e compondo a
seguintes versos em ritmo rap:
“Fico
indignado quando olho pra você
E
vejo que o tempo fez você desanimar
Na
vida é preciso algo mais pra se viver
Preste
atenção no que quero te falar:
Tenha
Fé
Fé
em Deus”
Empaquei
aí e mesmo tendo Fé, não saia mais nada. Por algum tempo a música ficou só
nisso. Até que, em certo dia, rolou um carneiro no bar que meu brother B-é
havia aberto na L. O rango tava uma delícia e uma galera passou a tarde no bar
tomando umas e jogando conversa fora. O B-é levou uns sons pra gente e logo eu
me animei em mostrar-lhe a música que estava compondo. Ele a achou interessante
e, em um momento, começou a elaborar uma outra parte da música entoando a
seguinte letra:
“O
vento que balança as folhas do coqueiro
E
o mesmo que sopra as velas do jangadeiro”
Achei
demais e aí a gente tentou, pelo resto daquela tarde, encontrar alguma
complementação para esses versos, porém não rolou nada legal. Paramos por ali.
No entanto, a idéia que o B-é havia dado enriqueceu pra caramba a música, sendo
que já estava na mão uma parte C para ela, só faltava encontrar alguns versos
legais para terminá-la.
Desse
modo, na semana seguinte, aquela finalização não saia de minha cabeça, quando,
em um dia, no intervalo do meu trampo, caminhando rumo a um restaurante próximo
ao serviço, relembro daquela cena no quiosque em Canoa, em que a gente estava
tocando e uma moça bem vistosa que vinha com os bugueiros curtiu pra caramba
nosso som, querendo ficar por lá. Então, nesse instante me veio a inspiração:
“O
vento que balança as folhas do coqueiro
E
o mesmo que sopra as velas do jangadeiro
Um bom lugar pra ficar
na sombra
E a menina faceira
samba ao som de um pandeiro”
Pronto.
Estava finalizada a música. E, como ela ainda não tinha nome e por todo
contexto que rolou, de quebra, com a finalização também ganhamos o título da
música - Ao som de um pandeiro.
Um
lance curioso dessa história é que, na época da primeira inspiração que tive
para compor essa música, eu ainda não havia tido quase que nenhum contato com o
ritmo do maracatu e, ainda assim, a levada base de Ao som de um pandeiro é
nesse ritmo. Dizem, no entanto, que a batida do maracatu surgiu com o barulho
que os escravos, vindos da áfrica, ouviam nos navios negreiros quando as ondas
batiam no casco da embarcação. Assim, talvez a onda que ouvi quebrando na praia
de Canoa possa ter também influenciado no ritmo em que essa música seria
composta. Viagem!
Em
agosto de 2006, escrevi Ao som de um pandeiro no 1º Festival de Música dos
Servidores Públicos Federais de Brasília e reuni uma galera para apresentá-la
na ocasião, sendo a canção premiada com o terceiro lugar no festival e também
com o melhor arranjo.
Desse
modo, foram necessários 18 dias em Jericoacoara e mais alguns em Canoa Quebrada para
que esse ser, que aqui escreve, entrasse no “astral” que permitiria a criação,
ou melhor, a captação de uma música. Não só os dias de liberdade, mas também o
contanto com toda natureza dos lugares por onde passei e, ainda, o contato com
pessoas maravilhosas foram elementos fundamentais no desenrolar de toda essa
história. Enfim, o vento que balança as folhas do coqueiro é o mesmo que sopra
as velas do jangadeiro.
Portanto,
chego à conclusão de que funcionamos também como uma espécie de antena e de que
a freqüência em que operamos é de fundamental importância para estarmos abertos
às variadas vibrações que o universo nos proporciona. Tenham Fé!
Assistam,
no youtube, ao vídeo do festival, com os devidos descontos pela precariedade da
gravação.
Brasília,
11 de junho de 2012.
Cláudio
Lima (Rubião)
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